Do “último assalto” aos acordos de Estoril – José Gama

Avatar By Redacao Jun 2, 2024
Do “último assalto” aos acordos de Estoril – José Gama

Em fevereiro de 1990, as forças governamentais FAPLA e as da UNITA travaram, na província do Cuando Cubango, um combate decisivo que virou o curso histórico do país. Era a batalha pela vila de Mavinga, denominada “último assalto”, que, se perdida das mãos de Savimbi, facilitaria a tomada de assalto à Jamba (Quartel General da UNITA) pelo exército governamental. Foi um fogo cruzado que durou 137 dias, forçando o líder da guerrilha, Jonas Savimbi, que se encontrava em digressão pela Europa, a interromper a viagem para dirigir pessoalmente as tropas que, no terreno, estavam a ser comandadas por dois destacados oficiais treinados na Academia Real Marroquina: o General Arlindo Pena “Ben Ben” e um então brigadeiro que, pela sua precisão em acertar com os morteiros, passou a ser apelidado por “Kamorteiro”.

O norte de Angola, zona em que até 1984 as tropas da UNITA operavam com algumas unidades a norte do rio Kwanza, estava agora transformado em Frente Militar Norte. Paralelamente, as autoridades angolanas prometiam ofensivas nas áreas do norte, e os soldados da UNITA respondiam ameaçando atacar onde mais doí: “Quando nós prometemos, cumprimos. Pensamos ser irresponsabilidade, em face da derrota de Mavinga, recomeçar com aventuras do mesmo gênero”, reagiam em comunicado. Foram registradas naquela zona algumas ofensivas contra colunas governamentais nas áreas ao norte de Luanda e a captura de cidadãos estrangeiros. As forças da UNITA previam fortes ofensivas que se estenderiam ao ano seguinte. “O ano de 1991 era o ano em que resolveríamos a situação no Uíge e depois de Luanda”, revelaria ao “Terra Angola” António Dembo, o comandante das FALA naquela região, adiantando que “em 91 o MPLA-PT teria perdido garantidamente o Uíge. As forças estavam preparadas para entrarem no Uíge no início de agosto.” De acordo com este comandante: “Infeliz ou felizmente, chegou a paz e este plano ficou sem efeito”.

Portanto, dada a gravidade da situação militar, somada aos acontecimentos na política internacional, resultando na queda do Muro de Berlim, o diálogo entre as partes era irrecusável, sobretudo com a pressão da comunidade internacional. A continuação da extensão em África da “guerra fria” estava fora da agenda das duas potências que dividiam ideologicamente o mundo, os Estados Unidos e a Rússia. Os chefes da diplomacia das referidas potências, nomeadamente James Baker, Secretário de Estado norte-americano, e Eduard Shevardnadze, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, tiveram uma reunião para abordar a questão de Angola. De seguida, Baker reuniu-se com o Ministro angolano das Relações Exteriores, Pedro de Castro Van-Dunem Loy, e, por outro lado, o Ministro Russo Shevardnadze fez o mesmo com o Presidente da UNITA, Jonas Savimbi, dando abertura para a reunião de Washington, em 1990. A citada reunião tinha três objetivos:

1.Consolidar o acordo entre os EUA e a então URSS sobre a necessidade de pôr fim à guerra em Angola.

2.Assegurar o compromisso das partes, UNITA e MPLA, na busca de uma solução negociada.

3.Traçar as linhas-mestre do que seria um acordo de paz para Angola.

Ainda no início da década de 90, os americanos enfrentavam a Guerra do Golfo e, em forma de retaliação contra a Administração Bush, o Congresso norte-americano aprovou uma legislação punitiva que incluía o corte de apoio à UNITA e, ao mesmo tempo, pedia à Rússia para encorajar o Governo angolano a dialogar com a oposição armada.

Também na cena internacional, a independência da Namíbia colocou geograficamente a UNITA numa posição desvantajosa ao ver fechadas as fronteiras que, no passado, serviam de portas para entrada da sua logística vinda da África do Sul, país que ocupava ilegalmente aquele território vizinho. As circunstâncias obrigaram ao movimento de Savimbi a surgir com um novo discurso em relação à SWAPO. A UNITA passou a manifestar-se disponíveis para estabelecer diálogo com o provável futuro governo da SWAPO, temendo que aquele território pudesse ser utilizado para atividades hostis contra as suas áreas. “Uma atitude dessas poderá provocar a extensão da guerra para a Namíbia, com graves consequências: ameaça da paz e da segurança na região por um novo ciclo de violência.” Reconhecia o “Galo Negro”, em comunicado.

A partir de abril daquele mesmo ano e sob mediação de Portugal, são registradas movimentações de elementos do Governo angolano e de representantes da UNITA no exterior rumo a Estoril num período de 13 meses, resultando em seis rondas de negociações. No mês seguinte, deu-se a livre movimentação de recuo das FALA, que tinham cercado o eixo Chambinga/Kuito e o eixo Mukundi/Kaiundo: “Tudo isso, em favor da paz. Mas, toda a provocação nesse sentido será respondida com vigor e agressividade” comunicavam as forças da UNITA que recorriam a um dizer de Napoleão Bonaparte para alertar que: “O mais difícil é passar da posição defensiva para a posição ofensiva”.

Por outro lado, enquanto aguardavam que o Governo Português indicasse uma outra data para a retomada das negociações, as autoridades angolanas viam-se agora mais próximas da sensibilidade de Washington. Jeffrey Davidow, um alto funcionário do Departamento de Estado norte-americano, ao tempo adjunto do Subsecretário de Estado para os Assuntos Africanos, é recebido em Luanda. O conteúdo das discussões, consubstanciado no princípio dos “corredores da paz”, agradou as duas partes beligerantes, que faziam fé que, se bem implementado, permitiria aos países vizinhos interessados concretizarem o apoio às zonas sinistradas em gesto de solidariedade e apoio ao povo angolano.

As negociações retomaram, porém, sem consenso. As autoridades angolanas apresentavam os seus pontos de tal forma que, a princípio, deixava o “Galo Negro” a suspeitar que desejariam colocá-lo numa posição de submissão. “Têm procurado convencer a UNITA que eles são governo. Nós já aceitamos este princípio para facilitarmos as negociações” relatavam os homens de Savimbi, que preferiam encarar as discussões como “negociação entre MPLA e UNITA”, porque, no entender dos rebeldes, não estavam diante de um “governo de toda Angola”.

Mostrando-se “não submissos”, a delegação da UNITA apresentou dois cenários com várias alíneas, nomeadas como “cenário desejável” e o “cenário não desejável”. No primeiro, incluíram uma série de exigências, dentre as quais deixavam claro que, na próxima ronda, teriam na mesa seis pontos que ficaram pendentes na reunião de Washington. Exigiam igualmente que os Estados Unidos e a Rússia passassem de observadores para a categoria de orientadores no processo, na ronda marcada para fevereiro de 1991.

Entretanto, no primeiro dia de maio, as partes chegaram a um entendimento que permitiu ao Ministro Lopo do Nascimento e ao Vice-Presidente da UNITA, Jeremias Chitunda, que chefiavam as respectivas delegações, assinarem os documentos que ditaram as negociações finais. Passados 17 dias, a cidade de Luena, que se encontrava há mais de 45 dias cercada pelas forças rebeldes, conheceu o cessar-fogo, culminando com o primeiro encontro das chefias militares encabeçada pelo General Higino Carneiro das FAPLA e o General Arlindo Pena “Ben Bem” das FALA, sob o elo do jornalista William Tonet. No último dia daquele mês, em Portugal, o Presidente José Eduardo dos Santos e o líder da UNITA, Jonas Savimbi, poriam fim aos 16 anos de guerra civil rubricando os documentos que ficaram conhecidos como “Acordos de Bicesse”.

Do “último assalto” aos acordos de Estoril – José Gama

José Gama